domingo, 15 de março de 2009

NOITE EM PARIS - CONTO - EL CARMO

NOITE EM PARIS
El Carmo

Fazia um friozinho e chuviscava. Ele parara em frente ao Eléphant Blanc. Esperar. Logo estiará. Eram, talvez, duas horas, ou menos. Outras pessoas ali se encontravam. Esperavam, silenciosas, a chuva passar. Um homem baixo, de careca luzidia, de roupas modestas, parou em sua frente e de costas, coçando seus perigalhos, comentou sobre o tempo. Eterno tema das conversas dos que nada têm a dizer. Tempo, Tempo. Eró, Eró. Tempo, Tempo. Não me comas, não me devores, meu pai. Eu quero viver. “Oh quero viver, beber perfumes na flor silvestre que embalsama os ares”. Eu quero a eternidade. Mecanicamente respondera àquele homem, convicto de que conversas passageiras não eram propícias para se iniciar uma amizade e isto era o que lhe interessava, pois sabia das dificuldades em se fazer amigos na França, e mais ainda, o quanto era difícil conservá-los. Como ser amigo de um clochard? De uma pessoa que não tinha morada e não se sabia onde procurá-la nas dificuldades? Não. Não era um mendicante. Flanava, apenas, flanava. E se fosse, iria precisar de um cloche? Si. No. Não lhe interessavam suas porandubas, nem pabulices, mas batera um papo. Era difícil encontrar alguém para papear. Sua vida transcorria em monólogos. Sem sons. Para que abrir a boca? Não havia ouvidos. Aquele homem percebera o estrangeiro. Talvez, também ele, um meteco em sua terra. Não. Não era um árabe. Mourisco das tabas tupis, alóbrogo desdentado. Il n´etait pas un pied-noir. Non, il n´etait pas un mexicain, non plus. Il s´agit d´un brésilien. Le Brésil. Le carnaval de Rio. Disse ser do sul e talvez entendesse um pouco de português porque sabia algumas palavras do provençal, la langue d´oc. Orgulho nos olhos ridentes. Alguma semelhança entre o português e o provençal? Existe ainda, falantes desta língua? Dela sabia apenas que tal qual o francês o u se pronuncia abrindo-se a boca para dizer ‘u’ e ao contrário dizer ‘i’, saindo um som semelhante ao ‘ü’ alemão. Acabava de aprender que bouche se diz boca como em português, une boca; Que nuit se escreve nuet, noite, e se pronuncia nué; dia não é jour mas jorn e se pronuncia dzur, pois o j e g se pronunciam dz; Ch se diz ts; Paraxítonas las palabras finitas em un, a, e, o, as, es, os. Saberá que Frederico Mistral, escrevendo em provençau, tornou respeitada a língua occitana. Dias virão em que lerá o Miréio: "Cante uno chato de Prouvènço./Dins lis amour de sa jouvènço". "Canto uma jovem da Provença. E seu amor de juventude". E lerá um dia a súplica dirigida ao rei René em 1474: Très soveyran et tres haut prince, A la vostra sacrada real majestat, humilment et devota si expausa..."
Uma rajada de vento e água. O velho recuou tocando-lhe. No sexo. Entendeu tudo. Não era isto que estava procurando. Tinha estado em alguns bares, mas não fora posto em almoeda. Não estava em almunada. D´Alliance Française, no Boulevard Raspail, onde estudava e lavava pratos, fora ao Trait-d´Union, na rua de Rennes. Sorveu o primeiro trago. Traçar destino para a noite. Daniel, coxo, cochon não, dançava a bandeja em suas mãos, gritando comandas, pedindo contas, agradecendo gorjetas. Estivera na Buate Grise. Ouvir cantar Pernambuco. Passara n´A Feijoada, Quai de l´Hotel de Ville, onde fora mirmidão e escansão, por vezes. Dar um abraço em Normando, rir das piadas de Claude e das reclamações de Madame Faure, implicando com ele, Claude. Pardon madame, pardon, dizia o garçon saído dos Halles, amantapaixonado pela bela. Cantar a bossa nova que Normando lhe ensinara a tocar, nas folgas, das segundas, n´A feijoada. Ensaiara cantar: "Guarda a rosa que te dei, esquece os males que te fiz. Timidez?. O pianista, da Martinica negro, reclamava sempre. Fora de ritmo. Falta de ritmo é timidez, ou um problema de respiração? Não seria justamente a música capaz de curar a timidez? Bela voz, ritmo atropelado. Tinha a compreensão e o carinho de Pernambuco. Bebera, bebera e bebera. Não lhe olhavam as loiras nem as morenas. Em vão. Tímido para a abordagem. Sozinho mais difícil a conquista. Não era um pédé. Não. Ele não dissera isto. Queria apenas sucer sa bite. Não. Aqui na rua, descaradamente assim? Qu´il n´y avait personne. Tous sont rentrés. L´Elephant Blanc fazia congé, nesta noite. Seus fregueses foram beber em outra freguesia o grogue reconfortador. Não, definitivamente, não. Iria voltar a seu quarto. Seu runcó. Subiria os sete vãos de escada do 16 rue d´Assas. Dormindo estaria Madame Zurflux e seu fiel kiki. Dormindo estaria Mademoiselle Zurflux. E Concepción, a solícita ménagère. La concierge botaria os olhos para ver quem estava entrando. Nunca dormem as concierges. Poria um disco na vitrola. Aquela que lhe presenteara a namorada, dedicada esposa do italiano. Lembraria o dia em que a conhecera ao comprar-lhe amendoim na avenida Saint Michel. Est-ce-que vous jouez de la guitarre? Por acaso tocava, sim, violão. Claro, dar-lhe-ia aulas de violão. Talvez não tocasse tão bem, não fosse capaz de tocar-lhe o Concerto de Aranjuez. Ou igualar Turíbio Santos num Estudo de Villa-Lobos. São Turibio, não o de Mongrovejo, apóstolo do Peru. O do violão, admirado e louvado em todo mundo. E que dizer de Baden Powell, o mágico do pinho? Baianinho, bota aí uma dose daquelas, preparar a garganta pr´aquela feijoada caprichada. Saberia, planger as primeiras notas. Só as primeiras notas. Um ré menor, um lá menor, um mi menor. Os tons menores são mais românticos e mais tristes. Os tons dos apaixonados. A música de quem tem dor de cotovelo.
Sim, subiria ao seu quarto. Lembraria o verde mar bravio de sua terra, azulverdelaranja, ai, sonho imberbe do noviço, recém saído do Vieira, colégio dos jesuítas, revindo de Itambé, ninho vocacionista, onde fora jogado pela Ordo Fratrum minorum Cappucinorum da Província da Piedade da Bahia. Volto para ti doce amour de ma jouvènço. Oxalá, esteja eu vivo após esta travessia, Inch-alah. Lembraria teus cabelos cor de oiro, o sorriso qu´eu queria conquistar à ponta de espada. Ai. Lembraria o dia do não no Duque, Na garganta preso o choro, mãos frias e corpo em transe, mundo em giro e voz caindo, vertigem, surdez e raiva, amor ferido e orgulho, caminhando rua afora, rua aqui rua acolá, aula de latim perdida, ruas estreitas e negras faces, na multidão escassos passos, cores pardas, cinzas, negras. Nem voz, nem som, nem sinos de igreja. Mar revolto, águas de março, Ab7. Teu fantasma. Pisa m´ia sombra, toma meu pulso, meu coração assalta. Mar, tão longe e tão presente, ai, doce mar, quem te acalma, doce mar de minha terra natal, mãe e pai de todos nós, aplaca tua ira, águas de março, Bb7/E. Ai, primeiro grito de amor, vence as barreiras do som, diz a ela que de longe, pode morrer a voz, pero não o sentimento, que veio sem ser pedido, mas aqui vai transmitido, como cantigas de amigo de um trovador solitário. Conta-lhe d´estranha terra, andanças, desencantos e encantamento, fome, fadiga e frio. Das noites de bar em bar, procurando sem achar, um cálice de vinho amigo. Conta-lhe esta odisséia, como Enéias contou a Dido. Ai marvada não me devores. Posso contar tua história.
No seu quarto, tomaria um copo de Porto. Esquentar o frio. Deitar-se-ia ouvindo tranquilamente Mozart. O Divertimento em ré maior, K334, do poeta que em l779, na velha Salisburgo, num rasgo de inspiração, compôs para o deleite da posteridade. Era cedo. Ainda não passara o leiteiro. Dormiria um pouco e voltaria à rua. Buscar sua cota de leite na mercearia. Não. Não era um clope. Não era um ladrão. Mercúrio, Hermes Trimegisto, sabe disso, mas há de protegê-lo. Fazia sua redistribuição da riqueza. Não como Robin Hood, porque não havia Ricardo, nem coração de leão, nem selva para salvá-lo, e sim para perdê-lo de miríades corações de pedra. Os franceses entregam o leite nas padarias e mercearias na madrugada. Como nas residências, deixavam os pacotes empilhados em frente à porta. Pegava sua parte todas as noites. Era preciso comer. E comer exige luta. A arma do fraco é o ardil, senão morre. Toda arma é lídima, se prá salvar a vida. Deixar passar aquele casal de namorados, levém um clochard, atrás mais outro, mais outros, como cáfila, andam. Em seu quarto lhe esperavam a baguete e a manteiga, esta, surripiada no marché à cotê. Não tremer como lhe dizia o amigo Luiz. Se tremer o francês vê, como quase viu no dia em que roubaram chocolate no mercado. Ou no dia em que te pegaram roubando um livro de Pierre George. A mão do segurança sobre teu ombro. Não. Não tinha esquecido nada. A prova do furto. O livro sob o capote. O caminho para delegacia. O caminho para seu quarto. Os gritos dos policiais. Inda bem que não viram a navalha, arma da capoeira, camuflada n´algibeira. O aljube seria certo, oh meu Deus, Deus meu, me valha. Polícia, igual em todo mundo. Como bem disse Maradona, (não se leia marafona), imbecis há em toda parte. Não mataram Sacco e Vanzetti? A deportação, que medo. A Volta, vergonha, vencido. Por-lhe-iam num barco de terceira. A viagem, a náusea e a chegada. O vômito voando sobre si, caindo no mar profundo, pede vênia velha senhora. Me desculpe, lhe desculpa. Vomitar também vomita sobre o azulmarchando canal. Dom Quixote não mancha, de la Mancha. Que perguntas que tu lhe fazes? Que perguntas tu lhe fazes, Paris? Luzes suas, saudade. O bulício de seus bares. Aprendizado sofrido. Fumo, vinho e cerveja. Ah, a cerveja. Lembranças lá d´ Aroeira. Chico de Anjo, do Paraná, chegando. Desce mais uma, João. Tome-lhe cerveja quente. Geladeira, coisa rara no sertão sem energia. Gritam, assustadas, mulheres desacostumadas. Virge, virge, bicha marguenta, até mijo parece, crendeuspadre. Un demi. Un panaché. Dizem os franceses saboreando-a sem parar. As discussões. Cinema, teatro e literatura. E política e política e política. Daria tempo de avisar a Chantal? Dar(get)-lhe-ia o violão, o berimbau. Um regalo. Devolveria a radiola a Louise. Que brigasse o italiano bigodudo quarantene. De bigode entendia desde os tempos do Vieira. Bigodinho, professor de matemática, não assustava ninguém. Só padre Hugo, com suas equações, infligia terror à turma apavorada. A máquina de escrever, deixaria para Novelli, se Alberto Sergio não a tivesse comprado. Que deixasse os pincéis por um momento. Escrever um poema. Os livros de política para o Ortega. Fazer a revolução na sua Nicarágua. Não esquecer. Poesia e teatro para David, neozelandês que não é maori, galego de zói azul, despido de tatuagens. Perdoá-lhe-ia por não lhe ter apresentado a petite allemande? Quanto infantil fora ele, quando juntos comeram moules, em Fontainebleau foram parar, ainda moles do vinho, quando simplesmente poderia, parar na cama com ela. La petite allemande. De vero não sabia, que a ela se referia David. Perdoá-lhe-ia por isso? Também ele nada fizera. Ficou na garganta o desejo. Dupla timidez ou tripla. Nem ele, nem ela, nem eu. Tamáriki, āe, tamáriki. Crianças, apenas crianças, soa o maori da Polinésia. De cinema, os livros para Iushiro. O zapon agradece. Arigatô. Saudades de Ikuko na libertária Amsterdão, das tulipas, das papoulas, do panteísta Espinosa. Quem te disse que não te quero hana flor d´Oriente? Tu, meu hanami querido. Sinto não te ter tido em meus braços, escondida na tua timidez. O tempo, comedor de gente, passa e com mil línguas, qual medusa, nos arrasta, garganta sua profunda, em caminho sem saída, sem volta, sem retorno. Viver é agora, dizia sem convencer nem a si mesmo. Quando iria rever amigos deixados lá? Seu berimbau? Talvez o único existente em toda Paris. Quanto deve a seu berimbau. O toque n´A feijoada de Madame Faure e o toque em Brigitte. Brigitte Bardot, Bardot. Brigitte beijou, beijou. Lá dentro do cinema todo mundo se afobou. Seus passos, sua dança e sua amizade. Ensina-me dançar o samba, ouvi de sua voz. Je veux samba, Je veux samba, oui,oui,oui,oui,oui. Ai. Brigitte a bela marvada que despedaçava corações em todo o mundo. Bastava ver uma foto sua, um filme onde as linhas ondulantes se mostrassem mais sinuosas qual um rio preguiçoso ondeando no vale sem fim. Vence a fera a fera vence. O verbo cortado na garganta. A bela encanta. O encanto do caminho da serpente que se não desencanta, sob o olhar e giros do dervixe. Olhos grudados na sua boca entre-aberta para o mundo. Cunhã maira, feiticeira d´além mar. Brígida. Ele não sabia que um dia ela iria lançar seus dardos contra imigrantes, negros, mestiços e mulçumanos. Que seu furor pela defesa dos animais era um disfarce para esconder sua xenofobia e seu desprezo pelo ser humano. Que um dia ela iria se preocupar mais pela sorte dos cachorros no Egito do que pela morte de pessoas na Palestina. Lembrou-se de seu berimbau, seu gunga. Gunga Din não. Seu gunga, o de biriba, não o traírindiano do imperialista Kipling. Como o amava, e as cantigas ensinadas por seu mestre Canjiquinha, invencível no toque do berimbau. D´outro mestre, Waldemar. calça branca, quadriculada camisa, no pescoço, vermelenço, en su cabeza, baêta. Esse Gunga é meu, eu não dou a ninguém. Esse gunga é meu, foi meu Deus que me deu. Esse gunga é meu. Panha laranja no chão tico-tico. Adeus, adeus, boa viagem, eu vou m´bora, boa viagem. Seu berimbau, seu toque. Angola rastejando como cobra. São Bento Grande veloz, Bento Pequeno manhoso, Angolinha astucioso, Samango, olha a polícia rombora. Seu Berimbau, seu abre-te Sésamo. Se ele estivesse ali. Delindo esperanças, o delegado interroga. O encanto da serpente. Os gritos dos policiais. Como pode? Um estudante de direito, ladrão, como pode? As lágrimas, não, de crocodilo, veramente lhe corriam. Não fora educado para o mundo, o mundo de aparências, mas d´essências. É muito mal, pois não aprendeu a regra do jogo, não ganhou régua e compasso. E sofre quando outros riem e gozam, gozam e riem. Nem imaginaria que um dia iria sofrer por uma formação ferrenhamente cristã, em que se cultivara o amor, o respeito e a honestidade. Nunca imaginara ser atacado um dia, justamente por pessoas desonestas e violentas, que confundiam humanidade, retidão de espírito com babaquice e covardia. Não era um cobarde. Ê Mundacho Torto, profundo baixo, gigante, frei capucho da Piedade, me ensina cantar o Réquiem, de preferência Mozart, me ensina contar o tempo, somar, multiplicar, solfejar multiplicar. Ali estava seu primeiro pleito. Puxa da pena o perdão. Deliu-se o furor policial. Vence a emoção, cala a razão. Vencer, venceu, mas será sempre assim? Prejudicada, quase, a prova de Geografia do professsor Pierre George, no Boulevard Arago. Ah, meu caro mestre, conhecedor do mundo inteiro, se tu soubesses o quanto é duro nascer, no Nordeste Brasileiro. Inventam os gregos a tragédia que o nordeste vive agora, com seus beatos e devotos, cangaceiros e jagunços, cantadores, padre Cícero, secas, fugas e paixões. Sant´Esquilo. São Sófocles. Sant´Eurípedes. Orai por nós que recorremos a vós. Não. Sê firme. E viverás. Mesmo que nem tenhas tido teu primeiro amor de juventude. Mesmo que te tenhas recolhido ante a estonteante Brigitte. Mesmo que não tenhas tido em teus braços a bela flor d´Oriente. Mesmo que te tenhas calado ante a petite allemande. E os olhos de Chantal? Seu sorriso em noite extrema, na dança do carnaval? Tu a tivestes, afinal? Mesmo que não. Mesmo que. Ai, marvada sorte fortuna, porque tu não me escolhes Ganeça, filho de Pavarti, deusa, de Shiva esposa? Porque tu me deixas nos braços do malvado Elegbará Seth Exu? Porque tu não me levas, Onipotente Zeus, pra no Olimpo servir, tal como tu levastes o troiano Ganimedes? Não. Sê firme. E viverás